O DESERTO MAIS QUENTE DO MUNDO
Obs: Esta reportagem foi publicada originalmente no dia 18/08/2013 no jornal Folha de São Paulo.
18/08/2013 - 02h05
Folha visita
deserto mais quente do mundo, no centro do Irã
SAMY ADGHIRNI
ENVIADO ESPECIAL AO DESERTO DE DASHT-E-LUT (IRÃ)
ENVIADO ESPECIAL AO DESERTO DE DASHT-E-LUT (IRÃ)
A estrada retilínea corta a planície e
se perde em miragens no horizonte. Dos dois lados da pista deserta, um mar de
pedra e areia.
Rajadas
de vento escaldante invadem as janelas abertas do carro, um modelo popular sem
potência suficiente para andar em alta velocidade com o aparelho de ar
condicionado ligado.
O
termômetro digital indica 46,5º C dentro do veículo.
Estamos
no deserto de Dasht-e-Lut, no centro-leste do Irã, o lugar mais quente do planeta, segundo a Nasa.
Deserto de Dasht-e-Lut
Em 2005, a temperatura medida por
satélite da agência espacial americana registrou 70,7º C no local. Recorde
absoluto em temperatura de solo.
No
último domingo, a Folha foi conferir, em pleno verão local,
como tamanho calor afeta o organismo e as atividades humanas.
A
reportagem chegou o mais próximo possível da área, inacessível para carros, que
acumula os valores recordes de calor.
Às
16h30, com o veículo parado no acostamento para medir a temperatura externa, o
termômetro marcou 54,1º C. A umidade do ar era de 10%.
Sob
o sol, a sensação é de sufocamento. De tão seco o ar, a língua gruda no céu da
boca, e o suor evapora quase instantaneamente. A respiração fica lenta e sem
ritmo.
CALÇAS COMPRIDAS
Usando
calças e mangas compridas para proteger a pele, conforme regra universal em
locais de sol extremo, o repórter se afasta do carro e anda meio quilômetro
deserto adentro.
O
motorista e o guia, que dizem nunca ter estado ali no verão, permanecem protegidos
no veículo.
O
crepitar das pisadas é o único som no ambiente. Com o corpo imóvel, é possível
apreciar o silêncio absoluto, enquanto se contempla a imensidão ao redor.
Não
há sinal de vida aparente. Nenhuma planta, nenhum animal. Apenas um cenário
bicromático: o marrom alaranjado da terra e o azul fosco do céu.
O
torpor que toma conta do corpo e da mente alerta para a urgência de sair do
alcance do sol. Os pés se arrastam.
Ao
alcançar o carro, o repórter despenca no banco de trás e compulsivamente despeja
na garganta meia garrafa grande de água mineral, ainda fresca por ter sido
comprada congelada.
A
vista fica embaçada, e a cabeça dói. Um enjoo se instala, impedindo de falar.
Sensação de nocaute.
Pensamentos
desagradáveis se sucedem, incluindo preocupações de segurança.
E
se o motor fundir, quem acudirá nesta área sem sinal de celular?
O
estoque de água seria suficiente por quanto tempo em caso de uma parada
forçada?
Há
algum hospital na volta para tratar uma possível desidratação aguda?
O
repórter derrama água numa toalha em volta da nuca, e o desconforto diminui.
VIDA HUMANA
A
adversidade climatológica ali torna impossível viver no meio do deserto de
Dasht-e-Lut.
As
residências mais próximas do ponto alcançado pela Folha ficam 100 km a sudoeste, em Shafiabad,
aldeia com cerca de 150 habitantes.
No
verão, eles evitam sair de casa do fim da manhã até o entardecer.
Quando
o sol dá trégua, cuidam do plantio de tâmaras e alho, únicas atividades locais.
Os mais privilegiados possuem alguns animais, principais vítimas do calor.
"Meus
parentes perderam duas vacas há alguns dias", conta o camponês Amir S.,
32, sentado no chão do único cômodo da casa sem janelas, para minimizar a
incidência dos raios de sol.
"Os
animais são colocados na sombra e molhamos sua pele, mas nem sempre
adianta", afirma.
Ele
garante estar acostumado com o tempo. "Às vezes a vida fica mais difícil,
mas nascemos e crescemos aqui, nossos organismos se adaptaram."
Reza
A., 21, vizinho de Amir, discorda. "É quente demais, não gosto
daqui", queixa-se o rapaz, que trabalha como pedreiro em vilarejos na
redondeza.
A reportagem pergunta a
Mardieh, mulher de Amir, como ela aguenta usar o véu islâmico -obrigatório fora
de casa e recomendado na presença de estranhos- com temperaturas tão elevadas.
"Fazer o quê? Assim
se vive", sorri, sem jeito.
A dona de casa Somaya E.,
19, diz não se incomodar. "Nem sinto diferença".
Em Shafiabad vive-se de
forma simples, porém sem miséria. Muitas casas têm TV com antenas parabólicas e
ar condicionado.
A água para o gado e as
plantações viaja, das montanhas situadas a dezenas de quilômetros até a aldeia,
por meio de vias construídas no subterrâneo.
A água potável chega por
dutos que interligam aldeias.
LUZ E ESCOLA
Shafiabad tem eletricidade
e até escola primária, num reflexo da forte penetração do Estado iraniano em
todas as áreas do país.
Nas redondezas da aldeia
ficam os Kaluts, formações rochosas que atraem turistas ocidentais em épocas de
temperatura mais amena.
O inverno nesta região
pode ser gelado, mas dura pouco tempo. "Janeiro e fevereiro são os únicos
meses frios, não gosto desse período", afirma Amir.
"Só consigo viver no
calor. Adoro a minha terra."
Colaborou RAFAEL GARCIA, de São Paulo
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